— Agora? Não…
— E agora? Também não.
— Agora!
O barulho do portão agita as orelhas de Peu, que se estica rapidamente, pula do sofá e se dirige ao banheiro. Ela pára em frente à pia, leva as patas ao ar e recua três vezes antes de pular e se pendurar lá por cima.
Peu, como uma boa gata curiosa, inspeciona bem a pia, com seu bigode tremendo enquanto fareja. Ela olha para a torneira com expectativa e bate com a pata empurrando a válvula pouco a pouco até a água começar a jorrar.
Agora já estava tudo pronto para tomar banho quando seu dono chegasse. Era só ele abrir a porta da sala e ela correria de volta à pia.
Passaram-se um, dois, três minutos desde o barulho do portão e nada da porta abrir. Ela já estava andando de um lado pro outro, até que algo deslizou por baixo da porta e ela se esquivou pulando. Incrédula, Peu se aproximou daquele envelope, deu uns dois tapas com a pata, mas ele não voltou a se mexer, perdendo a atenção dela.
O portão faz barulho novamente e dessa vez Peu pula direto do chão para a janela sem hesitar. — agora tinha que ser ele.
Um homem de roupa azul e boné de pano também azul olha para Peu enquanto fecha o portão e Peu se arrepia toda, escorrega da janela, mas cai em pé e desliza se escondendo debaixo do armário. Com sua pelagem preta, ela se camufla na escuridão e deixa apenas seus olhos de um brilho amarelo expostos.
Passado um tempo com tudo quieto, o vizinho cantando ao banho quebra o silêncio e lembra a Peu de seu banho. Ela finalmente sai de sua toca e volta ao banheiro, pulando novamente na pia, mas encontra a torneira sem um pingo d’água. Confusa, ela inclina a cabeça e bate novamente com a pata na válvula, se certificando de que havia aberto.
Ela fecha e abre as torneiras da casa algumas vezes, mas sem resposta da água. E agora? Ela precisava tomar banho para ganhar carinho de seu dono, mas a casa inteira resolveu deixar ela na mão.
— Mas o vizinho… o vizinho? Sim, o vizinho!
Ela abre a janela, pula, vai para o beiral… — Ah sim… Charlota, a cachorra da vizinha a espera lá embaixo.
O seu dono chega em casa e não se depara com Peu lhe esperando, como normalmente acontece, mas o envelope no chão chama sua atenção e ele esquece desse fato por um momento. — Cortada?! Seu ânimo por ter chegado em casa após um longo dia de trabalho vira em uma expressão confusa e triste. A água havia sido cortada e ele nem lembrava quantos boletos havia esquecido de pagar para chegar nesse ponto.
Peu inclina a cabeça de um lado e de outro como se acompanhasse os passos de seu dono andando preocupado pela casa. Ela precisava tomar seu banho, senão nem coragem de o encarar teria.
Charlota, uma cachorrinha de cor caramelo, franzina, porém barulhenta, fica com suas orelhas pontudas em pés olhando pro telhado após escutar um barulho sutil, porém suficiente para chamar sua atenção. É quando o vulto de Peu passa da telha para o muro e ela começa a latir sem parar.
Peu quase cai, mas se segura, sobe e começa a andar com cuidado enquanto os latidos agudos a desconcentrava. — Quem disse que Peu havia perdido suas habilidades de quando morava nas ruas?!
No quintal do vizinho seu Paulo, Peu andou de um lado pro outro até que encontrou um quartinho. Curiosa, ela apontou seus ouvidos para dentro e ficou agachada na entrada por detrás da parede de madeira.
— Pó! — um barulho diferente seguido de um chiado curto de vento, que retornou ao silêncio. — Pó! — outra vez o barulho e Peu revirava a cabeça. Não aguentando mais ela espiou pra dentro do local e foi quando começou a barulheira: era piado pra um lado, asas batendo pro outro, coisas caindo e Peu se preparando pra dar um bote.
Seu Paulo saiu desesperado para socorrer suas galinhas agitadas e foi nessa hora que Peu encontrou a porta da frente aberta e aproveitou.
— Uma xícara!
Assim que passou pela porta da sala, Peu viu uma xícara de café na estante ao lado da TV que seu Paulo deixou para atender suas galinhas às pressas. Imediatamente Peu subiu na estante e seus olhos, que já estavam com a bola preta bem grande para enxergar no escuro, ficaram maiores ainda. Com cuidado, mas nem tanto, Peu foi empurrando a xícara até a pontinha da estante, curiosa ao que se seguiria, mas lembrou de sua missão e desceu rapidamente.
O próximo local que ela explorou foi a cozinha e dessa vez não teve como resistir à tentação de um peixe frito que estava a convidando pelo olfato. Seus bigodes tremeram em excitação, então Peu subiu à cadeira, pulou para mesa, deu umas tapinhas e arrancou um pedaço do peixe.
Seu Paulo adentrou a casa bem na hora em que Peu estava lambendo as patas. Ele foi até a cozinha, pegou seu peixe e ficou o encarando por um momento enquanto Peu não conseguia nem respirar em cima do armário observando tudo.
— Aaaaaatchim! — seu Paulo espirrou, perdendo de vista o que estava lhe incomodando no peixe e seguiu para a sala, sentando em sua poltrona.
— Aaaaaaaatchim! Aaaaatchim! Aaaaaaaa… tchin… — Seu Paulo espirra mais algumas vezes quando pega seu café. Ele retorna a inspecionar seu peixe, mira a cozinha de olhos semicerrados e se levanta num pulo pra acender a luz.
Resmungando alguma coisa, ele começa a cheirar a mesa, espirrando mais algumas vezes e quanto mais ele se aproxima do armário mais os espirros aumentam. Ele pega uma cadeira, sobe nela e olha por cima do armário, encontrando alguns pelos enganchados.
Rapidamente seu Paulo se lança ao chão e começa a cheirá-lo com o quadril levantado. Nessa hora, Peu sai por detrás dele e os espirros aumentam. Ele se vira rapidamente e Peu se move novamente para trás, até que ele gira mais uma vez e ela escapa pelo corredor.
Eram três portas no corredor e Peu entrou na primeira que viu aberta. Ainda com o nariz no chão e o quadril pra cima, seu Paulo espirrava toda vez que se arrastava por onde Peu passou.
— Atchim, atchim, atch… atch… atch… a… a… a… — Os espirros de seu Paulo eram cada vez mais frequentes e Peu escutava mais próximos. Ele estava na porta da sala em que Peu estava!
Lá fora, o dono de Peu toca a campainha de seu Paulo, que deixa a caça à Peu de lado por um momento e, resmungando, vai atender ao chamado.
Aliviada, Peu olha ao redor e é surpreendida: ali era o banheiro!
Sem tempo a perder ela pula na pia, lança um olhar curioso à torneira e dá uns tapas, mas a válvula, diferente da sua casa, não tinha apoio, era redonda e lisa. Peu tenta mais uma vez e continua sem sucesso. Ela balança a cabeça de um lado e pro outro, seu rabo deixa de balançar e ela tenta mais uma vez, deslizando a pata quando bate nas laterais da válvula.
— Shiiiiiiiiiiiii… glut! — A água começa a jorrar quando Peu, impaciente, havia pulado com as duas patas dianteiras em cima da válvula da torneira, mas quando tentou se molhar a água parou. — Acabou a água aqui também?
Ela aperta mais uma vez e o mesmo acontece, incrédula ela tenta novamente, mas não dá tempo dela correr para debaixo da torneira. Sem tempo a perder ela vai ao chuveiro, mas é muito alta a válvula.
Peu fica olhando a válvula por um tempo, se estica toda e faz que vai pular e desiste várias vezes, até que pula, tenta escalar a parede pra chegar lá, mas a cerâmica é escorregadia. Ela tenta mais algumas vezes e o resultado é o mesmo a deixando desesperada, até que viu a cortina do banheiro.
Peu pula na cortina, crava as unhas, se engancha toda, mas fica numa boa altura, suficiente para pular na válvula e girar um pouco ela. Ela cai no chão e faz mais uma vez, jorrando um pouco mais de água. Na última tentativa o suporte da cortina não aguenta tanta turbulência e cai, impossibilitando Peu de abrir mais o chuveiro. Mas já era o suficiente para tomar seu banho.
Tomada banho e cheirosa, Peu encontra uma das janelas do corredor aberta e por ali mesmo decide voltar para casa. Dessa vez Charlota estava dormindo e ela passa com cuidado, sorrateira para não acordar a cachorra e nem chamar atenção de seu dono que estava conversando com seu Paulo.
Quando seu dono chega em casa, Peu estava no sofá, deitada, com cara de desamparada, clamando por carinho. Ele a coloca no colo, mas algo rouba sua atenção pela janela o fazendo largar Peu lá mesmo para ir ver o que era aquilo: estava saindo água pela porta do banheiro de seu Paulo.
Seu dono sai para avisar ao vizinho e Peu fica no sofá sozinha. Da janela ela vê quando seu Paulo entra no banheiro, coloca a mão na cabeça e sai. Ela acompanha a movimentação do vizinho e seu dono, acompanhando com a cabeça eles para lá e para cá, buscando utensílios para reparar aquela bagunça.
A primeira coisa a se resolver foi o ralo que já estava precisando de uma manutenção, mas o pelo de Peu ajudou a entupir. Seu dono pegou aquela tuia de pelo preto, foi até a janela do corredor e mostrou a Peu, que só pensou na melhor coisa a se fazer diante daquilo: dormir.
Por Gepeto Codado
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